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Morte.


La Barca de Caronte - José Benlliure Gil (1919)

La Barca de Caronte - José Benlliure Gil (1919)

Desde muito cedo, e quase cotidianamente, penso na morte. Ou melhor, nas mortes. Na minha, na de pessoas próximas, na de estranhos, na de animais, na morte em sua plenitude. Não sei exatamente o porquê. Certamente por uma natural dose de medo, mas não só. Outrora, achava que essa peculiaridade era ser formador da minha personalidade “estranha” de um adolescente que ainda não achara seu lugar no mundo. A adolescência passou, eu continuo sem achar meu lugar no mundo e continuo a pensar em morte. Ou a “estranheza” me acompanhará por toda a vida, ou talvez pensar em morte não seja assim tão estranho. Assim como o mar, sua imensidão e seus mistérios, a morte me provoca dualidades aparentemente paradoxais de sentimentos: temor e atração, receio e sedução, desdém e respeito.

Nasci em uma família de espíritas, filho de mãe médium, criado sob a égide de uma cultura onde ensina-se que a morte não é o fim, apenas uma etapa de uma missão maior. Naturalmente, espíritas e os demais que creem na reencarnação tendem a lidar melhor com a morte. Contudo, não sei se esse é o meu caso.

A dramaturga Camila Appel, que mantém na Folha de São Paulo um interessantíssimo blog intitulado “Morte Sem Tabu”, afirma que a morte é o próximo tabu a ser quebrado pela minha e gerações seguintes. O primeiro é o sexo. Curioso constatar como a mais rígida das fronteiras se construiu no único elemento, até então, inadiável, irremediável e inescapável para absolutamente todos os seres vivos. Nos idos da década de 90, Renato Russo já cantava “viver é foda, mas morrer é difícil”.

O medo da morte tem lá suas vantagens. Temê-la nos impulsiona (ou deveria) a viver mais e melhor. Quantas pessoas vocês conhecem que após um grande susto, acidente, doença ou algo que o valha, decidiu reformular suas vidas a fim de aproveitá-las melhor? Nada mais comum. Talvez isso se aplique ao medo de uma forma geral, não só da morte.

A morte não anda sozinha. Em nossa cultura, onde a morte foi sacramentada como o fim da linha, ela vem acompanhada da melancolia. A melancolia, aquele que até o feudalismo pré revolução burguesa era um sentimento estritamente europeu, como bem observa o médico e escritor gaúcho Moacyr Scliar, no livro “Saturno nos Trópicos, a melancolia europeia chega ao Brasil”. Hoje, a melancolia nos é tão íntima e companheira que parece uma nativa forjada nas praias tupiniquins. Aliás, o sentimento melancólico pós-morte de um ente querido é uma das muitas imposições da nossa cultura. Ai daquele que ousar não se deprimir.

No capítulo IX de Don Quixote, Cervantes descreve o encontro de Sancho Pança e Don Quixote com uma carruagem na estrada: “A primeira figura que se ofereceu aos olhos de Don Quixote foi a própria Morte com rosto humano; junto dela vinha um anjo com grandes asas pintadas; ao lado estava o imperador, com sua coroa, aparentemente de ouro, na cabeça; aos pés da Morte estava o deus chamado Cupido, sem venda nos olhos mas com seu arco, seu carcás e suas flechas; vinha também um cavaleiro...”. Nesta alegoria, observa-se, como bem destacou Scliar, que é a morte quem chefia a caravana, com um anjo, representando o poder celestial, do lado, e o imperador, representando o poder terreno, do outro. Atenta-se ainda para o fato de que o amor, representado pelo Cupido, não governa a carruagem, ao contrário, vive aos pés da Morte. Ainda, Cervantes retira as vendas dos olhos do Cupido – o amor é cego – em uma clara mensagem: diante da Morte, assim, com M maiúsculo, os olhos se abrem para uma realidade brutal. Seria esta alegoria uma descrição da vida? Só Miguel poderia nos responder.

Em Hamlet, de Shakespeare, o tema da morte, através da ótica suicida, aparece nas palavras de Macabeth da seguinte forma: “vale a pena lutar contra um mar de adversidades para manter a vida, essa história contada por um idiota, cheia de som e fúria?”.

Pensar a morte é também pensar a vida. É refletir sobre um destino certo, embora sem data marcada. Saber que vamos morrer, mas não quando, exerce um papel singular na dinâmica que faz a roda girar. Viver sob o signo desta incerteza confere a vida um tom de adrenalina e excitação, em outras palavras, é a morte que (re) significa a vida (? ). Para Montaigne, filósofo francês, “filosofar é aprender a morrer”. Filosofemos então.

Pedro Del Mar

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