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Lula na ONU e a práxis como critério da verdade.


Käthe Kollwitz, Selbstbildnis (Autorretrato), 1934. Litografia sobre papel tecido, Folha: 36,3 × 26 cm. Presente do Dr. Brian McCrindle, 2015. © 2018 Art Gallery of Ontario.


Na última terça-feira (19), o presidente Luís Inácio Lula da Silva voltou a discursar na Assembleia-Geral da Organização das Nações Unidas (ONU) após um hiato de 14 anos. Em sua abordagem, Lula falou sobre temas candentes como críticas ao embargo a Cuba, ao crescimento da extrema direita no mundo e a falta de combate à desigualdade social.


Contudo, quero aqui tratar sobre dois pontos abordados pelo presidente que se conectam com a política interna posta em prática nestes quase 10 meses do seu terceiro mandato.


Lula, como é de conhecimento público e notório, é um dos melhores oradores que se tem notícia. Domina a prática discursiva e a retórica como poucos, e essa habilidade é característica basilar da sua biografia de sucesso mundialmente reconhecida.


Apesar deste domínio quase impecável sobre o método discursivo, o conteúdo do seu discurso pode e deve ser submetido ao escrutínio da crítica pública. Por isso, permito-me chamar a atenção para dois pontos destacados por Lula que não correspondem ao que é praticado em seu terceiro governo.


Ao expressar preocupações sobre o crescimento da extrema direita global, Lula criticou o neoliberalismo e disse repudiar uma agenda política que ataca o Estado de bem-estar e os direitos dos trabalhadores. Mais uma vez, se o discurso do presidente parece acertado, uma análise das ações do seu governo nos leva a um caminho diferente e contraditório.


Ao contrário do que foi defendido em sua campanha eleitoral, Lula, através do Ministro Fernando Haddad, pôs em prática um conjunto de regras e metas fiscais chamado “arcabouço fiscal”, que nada mais é do que um novo teto de gastos mais limpinho e menos fétido. Em resumo, uma vez que o espaço é insuficiente para destrinchar o tema e muita gente boa já o fez – a exemplo do economista David Deccache e dos historiadores Jones Manoel e João Carvalho -, o arcabouço segue à risca uma série de princípios defendidos pelo neoliberalismo, incluso o famigerado tripé macroeconômico (superávit primário, câmbio flutuante e metas de inflação). Ao estabelecer regras rígidas que limitam as despesas públicas, o novo dispositivo fiscal compromete os investimentos e melhorias que o Brasil tanto precisa após os desastres dos mandatos do golpista Michel Temer e do protofascista Jair Bolsonaro.


Investimentos em educação, saúde, infraestrutura, geração de emprego e renda, ciência, inovação e tecnologia e na valorização do funcionalismo público ficarão engessados com o arcabouço de Lula e Haddad. Em suma, o novo teto de gastos segue fielmente a cartilha neoliberal, ataca frontalmente os direitos dos trabalhadores e compromete a edificação de um Estado de bem-estar robusto e eficiente.


Outros dois exemplos ilustram bem esta contradição crônica entre o discurso e a prática de Lula na seara econômica. Vejamos:


1 - A inoperância e falta de vontade política do governo Lula III em debater e pautar a luta pela revogação da reforma trabalhista e pela reestatização de patrimônios do povo brasileiro que foram praticamente doados ao capital financeiro internacional pelo governo anterior, a exemplo da Refinaria Landulfo Alves, que após sua privatização tornou a Bahia um dos Estados com combustíveis mais caros do Brasil, afetando diretamente a qualidade de vida do povo baiano e até mesmo a sua segurança alimentar.


2 - O governo está aventando eliminar os pisos constitucionais da saúde e educação, garantias da Carta Magna de 1988 que nem o ultraliberal Paulo Guedes ousou fazer. O Secretário do Tesouro Nacional, Rogério Ceron, subordinado de Fernando Haddad, afirmou que o governo enviará uma PEC para viabilizar o projeto. Por sua vez, o Secretário do Orçamento, Paulo Bijos, subordinado de Simone Tebet, sugeriu que o governo deve encaminhar solicitação ao Tribunal de Contas da União (TCU) para que o órgão de controle autorize o descumprimento da Constituição.


Para além da incongruência entre o discurso e a prática na condução econômica, outra incompatibilidade me saltou aos olhos no discurso de Lula na ONU. De forma correta e perspicaz, Lula disse que são as populações do chamado Sul Global – 3º mundo para os mais saudosistas – as mais afetadas pelas mudanças climáticas causadas pela acumulação predatória – com o perdão da redundância – do centro do capitalismo global. Ainda, enfatizou que os países em desenvolvimento não querem repetir este modelo.


A fala do presidente, repito, foi correta e perspicaz, uma vez que identificou no desenvolvimento desenfreado do capital a raiz dos problemas climáticos que nos afetam hoje. No entanto, um olhar atento às práticas do seu governo na seara ambiental demonstra a inexistência deste ímpeto em não repetir o erro das grandes potências no que tange a exploração de combustíveis fosseis.


Como já tratado em anterior texto deste blog (leia aqui), o governo Lula tem rompido barreiras e forçado a barra para viabilizar a exploração de petróleo na foz do Amazonas, passando por cima de todos os laudos técnicos do IBAMA - endossados pelo Ministério do Meio Ambiente (MMA) - que apontam os diversos prejuízos ambientais e para as comunidades locais.


Ainda, durante a Cúpula da Amazônia, realizada em Belém/PA em agosto passado, o Brasil foi signatário do documento final feito pelos países membros da Organização do Tratado de Cooperação Amazônica (OTCA) que deliberadamente deixou de fora metas para o desmatamento e a exploração de petróleo na região. No mesmo evento, vale destacar, o presidente Lula se recusou a receber o Cacique Raoni, aquele mesmo que subiu a rampa do planalto em sua posse, uma das maiores autoridades indígenas e ativista ambiental da América Latina.


Se é inegável a capacidade singular de encantar serpentes que Lula possui em seus discursos, também se torna inquestionável que suas palavras andam cada vez mais descoladas das suas práticas. Discursos potentes e com potencial histórico na ONU, G20 e outros organismos internacionais são importantes, ajudam no resgate da autoestima dos brasileiros e posicionam o Brasil de volta em um cenário geopolítico e diplomático de destaque no tabuleiro global. Todavia, são inócuos se desacompanhados de ações e políticas públicas que atuem sobre as raízes dos problemas pátrios.


Lula pode e deve falar bonito, mas precisa casar-se com ações na direção oposta das praticadas pelo seu governo até aqui, para que de fato possamos sair dos escombros do neoliberalismo e reerguer o Brasil para e da gente trabalhadora brasileira.



Pedro Del Mar.




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